domingo, maio 30, 2010

Eat Drink Man Woman - I

Alimento, amor e sexo. Dimensões subjetivas da vida 



Acreditamos que a análise da obra cinematográfica em referência, não se afasta, substancialmente, do óbvio. Entretanto, do fecundo universo ao qual podemos observar sua pluralidade de significados, procuramos interpretá-la de modo particular, calcada numa construção de conceitos comuns.
A iniciar pelo título eat drink man woman, podemos afirmar que as nossas vidas são orientadas por algumas necessidades fisiológicas básicas: comer, beber e respirar. Mas, ao nos referirmos à alimentação, especialmente, o nosso imaginário vai para muito além, evoca na nossa mente uma série símbolos e significados sociais, sexuais, religiosos, estéticos, etc…
Não é divagado falar que a abordagem das questões pertinentes à alimentação é muito próxima das questões sexuais, das questões do amor. Entendemos que estas são situações pouco claras, de cunho subjetivo, sem uma fonte exclusiva e sem um diagnóstico facilmente localizável. Alimento, amor e sexo são termos que representam o homem na sua dimensão integral, onde estão circunscritas interferências de toda ordem e susceptível de interpretações diversas.
Afirmam os antropólogos que o sexo e a alimentação são aspectos do comportamento humano, dos mais sobrecarregados de ideias. No filme, essa afirmativa pode ser observada no diálogo entre o chefe Chu e o chef Wen:
– “Comida e sexo são as necessidades humanas básicas, não há como fugir”;
e complementa:
– “o som não está no ouvido;
– o sabor não está na boca;
– o sexo não está…”
Dito isso, acreditamos que o título reflete os principais desejos da natureza humana: o de comer e o de fazer sexo.
A história tem segmento numa sociedade oriental modernizada e muito ocidentalizada: revelada na pressa, no movimento intenso dos automóveis, como se fosse o sangue ferruginoso bombeado pelas batidas de uma rumba a exalar um aroma de gás carbônico – é a imagem da vida ocidental cujas ruas estão abarrotadas de carros, de barulho e de fuligem. Ruas que pulsam como artérias poluídas e nos dão a sensação de que a vida flui – muitas vezes – no tom cinza, sem aromas, sem sabores, sem tempo para ouvir, sem tempo para amar.
São aspectos da sociedade contemporânea, tal como o fast food – um modelo alimentar de qualidade bastante discutível, cuja globalização entendemos revelar aspectos condenáveis e subverte a mente humana quanto à consciência que se revela no prazer inigualável de apreciar e saborear um alimento. Prazer que vai muito além de simplesmente conduzir o alimento do prato até a boca. Ademais, os tentáculos do fast food estão fincados na uniformização do padrão alimentar, podem enfraquecer e, até mesmo, destruir (a longo prazo) a identidade cultural alimentar de vários povos, conduzindo ao enfraquecimento da alimentação tradicional, reveladora de cultura singular. Na película, a identidade cultural alimentar está representada pelo chef Chu. No contexto da história ele está envolvido numa intrínseca relação de poder; cultiva a distinção social pelo gosto, pela identidade étnica repassada através das técnicas alimentares, o que podemos observar através do cuidadoso processo de elaboração dos alimentos, que aparece numa explosão de formas e cores.
Observamos que a aparente superficialidade das imagens dos alimentos nos faz viajar pelo imaginário, com isso, dizemos que o jogo visual apela para outros sentidos: o aroma, o tato, o palato e a audição. E aqui cabe uma observação acerca do palato: há uma cena na qual o chef revela a possível perda do palato, o que acreditamos refletir a perda dos elementos essenciais da família, primeiro a mulher e em seguida as filhas (três irmãs de temperamentos tão diferentes): a mais velha, uma professora amargurada que viveu até então, efetivamente, de uma ilusão, de uma fantasia amorosa; a filha do meio, uma executiva de hábitos ocidentalizados – porém a única que mantém a tradição; e a mais jovem que trabalha, ironicamente, numa cadeia de fast food – cada uma encontra um novo parceiro, o que marca um novo contexto familiar. E nos parece que a mais velha e a mais nova querem se libertar daquelas tradições. A percepção desse afastamento o faz perder a sua capacidade gustativa – entendemos que perder o paladar reflete perder o gosto pela vida.

Shirley Bilro Medeiros

Eat Drink Man Woman - II

O amor através do alimento


O almoço dominical é um ritual – sempre marcado por revelações importantes – que nos faz crer que o alimento não é só aquilo que levamos do prato à boca e que supre as nossas carências fisiológicas, mas um ritual que provoca a construção de papeis afetivos: o alimento do espírito, do amor, de renovação. É a maneira que o Chu encontra para expor as suas emoções mais profundas, ele se agarra na paixão pela construção da arte gastronômica e reflete, através dos pratos, o amor que dedica às filhas. (Ressaltamos que o chef Wen compara o chef Chu a Beethoven).
É necessário ressaltar que pai e filhas têm uma enorme dificuldade de demonstrar a afetividade, pois não há toque, não há carinho físico, não conseguimos ver um beijo afetuoso, um abraço aconchegante. No seu silêncio as suas emoções são quase imperceptíveis mas que explodem através da arte minuciosa, delicada, transportada para os pratos apresentados. Com isso, dizemos que ele não verbaliza para as filhas, que as ama, mas procura substituir as expressões orais e físicas através da preparação de pratos sensorialmente complexos. O seu poder de toque e a sua sensibilidade são transportados pelo aroma, pelo paladar e pela beleza dos pratos. Assim, o amor é comunicado através da comida preparada – o que vai muito além da satisfação que entra em nosso sentido através das papilas gustativas.
Em determinada cena, a filha mais jovem diz:
– “Amar é estarmos com alguém com quem podemos expressar os sentimentos.”
E mais, é através das papilas gustativas que desencadeiam-se o mecanismo físico de percepção do doce e do amargo, as sensações antagônicas: quente e o frio – aqui está presente a dualidade da vida: o Yin e o Yang. Amar também é discordar, é enfrentar, daí percebemos que, no convívio em torno da mesa, logo afloram as tensões que são uma realidade no núcleo familiar. Nota-se, claramente, o conflito das gerações.
Mas vida é cíclica, e ele recupera o palato e o amor pela vida. O que é recuperada pela explosão de um novo sentimento afetivo, uma nova parceira. Notamos o vínculo que se estabelece entre ele e a Chan Chan (filha da nova mulher) – influenciada por Chu, a criança passa a valorizar o alimento tradicional e influencia os coleguinhas da escola, tanto que passam a elaborar o cardápio do almoço.
Last but not least, na cena final, onde cada um dos personagens toma seu destino, o encontro dominical resume-se a Chu e filha do meio, que prepara a refeição e, na degustação de uma sopa é recuperado um sabor perdido, designadamente quando ele diz:
–“Há gengibre e um pouco de… (reticencias…) (esse sabor, entendemos ser o afeto profundo, não verbalizado, silenciado mais uma vez, mas que se reflete no toque suave das mãos de pai e filha que aconchegam na malga que contém o sabor das recordações).
Nessa cena, o alimento é fonte de recordação, e vale lembrar – como diz Soren Kierkegaard – recordação é diferente daquilo que simplesmente guardamos na memória, porque recordar é da ordem da idealidade e a memória é indiferente ao conteúdo. Na recordação, Chu e filha conservam a eterna continuidade da vida. É um momento tenro de saudade. E saudade é vir à memória uma doce recordação das envolvências e das situações vividas por aquela família.

Shirley Bilro Medeiros

terça-feira, abril 20, 2010

As Asas do Desejo I

Der Himmel über Berlin: Wim Wenders, 1987

Eternidade e efémero ou a condição humana como desejo



Anjos sobrevoam Berlim. Escutam os pensamentos e as angústias dos berlinenses com curiosidade e espanto. Assistem ao viver quotidiano dos humanos como os espectadores que assistem a um filme. Mas tal como o espectador na sala de cinema, os anjos são passivos, assistem aos diferentes ‘filmes’ sem nada poder alterar . Contemplativos, os anjos vêem o mundo a preto e branco: sem cores, sem emoções.
São anjos e, por isso, imortais. Mas engana-se quem pensa que a plenitude é dada pela imortalidade… O ser pleno não deseja porque não sente falta, logo, não procura, permanece imóvel. Os anjos de Wenders (parecem detectives do film noir ) desejam… Damiel (Bruno Ganz) é um anjo atravessado pela falta, falta que progressivamente o vai metamorfoseando num humano, demasiado humano… Damiel, consciente da falta, sente desejo… ele é o desejo. Atravessado pelo desejo da vida, o desejo de uma existência humana, o desejo de conhecer, o desejo de saber , desejo de experimentar, desejo de sentir a pele de Marion (a trapezista de circo por quem se apaixona) mas, também, o desejo de transcender a sua condição eterna, ou seja, de transcender a transcendência.
Somos sensíveis aos mortais que desejam a imortalidade e a plenitude, compreendemos a revolta do homem contra a sua finitude, compreendemos o medo da morte, compreendemos a fuga dos homens às condicionantes espacio-temporais, procurando, deste modo, transcender os seus limites. Os humanos tentam permanentemente transcender, fugir ao efémero, à transitoriedade, procurando a eternidade. Pelo contrário, estes anjos que desejam, que querem ser humanos, escolhem a transitoriedade, o efémero. Parece absurda a ideia de renunciar à existência de anjo a favor de uma vida humana. Contudo, se a existência humana é limitada pelo tempo, ela é mais autêntica, vivida e real que a existência dos anjos. Porque não «trocar a sua imortalidade por uma vida humana, curta e ardente» ?



«Cassiel – E tu que tens para contar?
Damiel – Uma transeunte fechou o chapéu-de-chuva e ficou encharcada. (…) É fantástico viver espiritualmente. Dia após dia testemunhar para a eternidade o que há de puro, de espiritual, nas pessoas. Mas, às vezes, farto-me desta eterna existência de espírito. (…) Gostaria de sentir um peso que anulasse a infinidade e me segurasse à Terra. A cada passo ou a cada golpe de vento. Gostaria de poder dizer: «agora, agora, agora» e não «desde sempre» ou «para todo o sempre».
Sentar-me à mesa e jogar às cartas, ser cumprimentado nem que seja só com um aceno. (…) Eu não quero gerar um filho nem plantar uma árvore, mas seria agradável chegar a casa cansado e dar de comer ao gato, como Philip Marlowe, ter febre, ficar com os dedos sujos de ter lido o jornal… Não me entusiasmar só com coisas do espírito, mas com uma refeição, a curva de uma nuca, uma orelha. Mentir à descarada. (…) E, finalmente, supor em vez de saber sempre tudo. Poder dizer «ah», «oh» e «ai» em vez de «sim» e «ámen».
Cassiel – Poder, ao menos uma vez, entusiasmar-me com o Mal. (…) Ser selvagem.
Damiel – Ou experimentar o que se sente quando se tiram os sapatos debaixo da mesa e se estendem os dedos descalços.»


No filme de Wenders, o desejo é o que confere sentido à existência humana, conquistamos a humanidade a partir do desejo.
No princípio era o desejo…o desejo faz a história. E o Verbo. Damiel sabe algo que os anjos não sabem: conhece o desejo, sabe que a humanidade tem uma beleza peculiar e, por isso, escreve. «Agora, eu sei o que nenhum anjo sabe...»
(…)
A temática do efémero versus eternidade surge em dois temas fundamentais da discografia de Nick Cave and the Bad Seeds, «The Carny» e «From her to Eternity» que o filme de Wenders convoca.

1- A ideia de um filme protagonizado por anjos esclarece-a Wim Wenders na obra, «Wim Wenders, A lógica das imagens»: «A posteriori é-me já quase impossível determinar como nasceu a ideia de povoar com anjos a minha história em Berlim. Surgiu de muitas fontes ao mesmo tempo. Foram, sobretudo, as Elegias de Duíno de Rilke. Depois foram, já desde há muito, os quadros de Paul Klee. O Engel der Geschichte de Walter Benjamin. Foi, de repente, também uma canção dos Cure, na qual se falava de fallen angels e uma música no auto-rádio, em que aparecia o verso talk to an angel. Foi, um dia, no centro de Berlim, aperceber-me daquela figura dourada, o «anjo da paz» (…) resumindo, foi, por assim dizer, a velha «nostalgia do transcendente» e foi simultaneamente também a vontade do contrário flagrante: a vontade de fazer uma comédia!», pp.118-119. Trata-se, já aqui, do cinema a convocar outras artes: literatura, a pintura e a música ou melhor, neste caso, a ser convocado por elas.
2-Cf. Wim Wenders, «Wim Wenders, A lógica das imagens»: «Os anjos estão, portanto, em Berlim desde o fim da Segunda Guerra Mundial, condenados a permanecer aqui. Não detêm já «poder» algum, são apenas espectadores, assistem a tudo aquilo que acontece, sem a mais pequena possibilidade de poderem participar.», p.121.
3- Peter Falk (detective Colombo) está a filmar em Berlim e vimos a descobrir que já fora um anjo que desejou tornar-se humano e se lançou na procura dessa humanidade.
4- De salientar que a raiz etimológica da palavra saber reside em sophia, traduzida em latim por sapiência. Sapiência significa, entre outras coisas, saborear. Este anjo porque sente falta, deseja e procura colmatar o seu desejo. Ele é, por natureza, filósofo. Também o filósofo procura saborear as coisas boas e más da vida para lhes construir um sentido. (É interessante o modo como este filme percorre o terreno da Filosofia)

5-Wim Wenders escreve «nunca antes isto acontecera. Que é possível, isso sabem-no os anjos. As consequências, porém, são desconhecidas.
O anjo que teve a ideia terrível tinha sentido o desejo de se apaixonar por uma pessoa, por uma mulher, e a ideia de poder tocá-la esteve na origem deste pensamento de resultado imprevisível. Fala sobre isto aos seus amigos. Primeiro, estes ficam chocados. Depois, porém, ponderam seriamente sobre as consequências e imaginam o que poderia acontecer como resultado de que alguns de entre eles estejam, afinal, prontos a ousar dar este passo: trocar a sua imortalidade por uma vida humana, curta e ardente.» in, Wim Wenders (2010), Wim Wenders, A lógica das imagens. Lisboa: Edições 70, p.124

6-Trocadilho com o título do livro de James Jones e com o título do filme de Fred Zinnemann «From here to Eternity». Este trocadilho não é inocente e reside na substituição do deítico espacial (here) pelo deítico pessoal (her). Aqui, o cinema convoca uma música que, por sua vez, convoca o cinema. Esta intertextualidade enriquece o objecto artístico e dá-lhe outros sentidos, propicia outras abordagens.

Cristina Janicas
Abril de 2010

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As Asas do Desejo II
Der Himmel über Berlin: Wim Wenders, 1987


O cinema e o circo

Wenders escolhe o circo como metáfora da vida humana. O circo é, por excelência, a arte do efémero. O circo é transitório… a vida do circo é curta… fragmentada… monta-se a tenda… faz-se o espectáculo… desmonta-se a tenda e fica a marca de um vazio, de uma ausência, de algo que já não é. O circo não possui raízes, é, por natureza, nómada e a-espacial. A vida humana é como a do circo… nasce, constrói-se mas, acaba.
A primeira imagem que se vê do circo é-nos dada através de uma passagem pela qual podemos ver uma tenda. A câmara aproxima-se e mostra-nos as pessoas do circo. À semelhança do circo também aqueles que o habitam são humanos desenraizados. E, por isso, livres.

«Marion – Não sei quem sou, não faço ideia. Sou alguém sem origens, sem história, sem país e quero continuar assim. Estou aqui, sou livre, posso imaginar tudo. Tudo é possível. Basta erguer os olhos e volto a ser o mundo. Agora, aqui, uma sensação de felicidade que sempre poderei ter.»


É no circo que Damiel vai encontrar o objecto do seu desejo, que o vai impelir a metamorfosear-se em humano: Marion, a trapezista, a que voa, a que (como alguns na vida…) tenta transcender os limites do humano.
No decurso da metamorfose de Damiel, este cruza-se com Peter Falk junto a uma roulotte, mais um lugar sem raízes…transitório…efémero.
O circo não representa apenas a transitoriedade da condição humana. Nele encontramos a tragédia, a comédia, o sublime, o horrendo, o equilíbrio, a harmonia, a desproporção… a vida e a grandeza e pequenez que encerra. Ou seja, nele encontramos a diversidade da experiência humana, a variedade de matizes, as cores.
O circo é, ainda, o lugar por excelência das crianças, um lugar onde situamos a infância e a inocência de que fala o poema de Peter Handke, Lied Vom Kindsein (A Canção da Infância), que inicia o filme. A criança que é capaz de ver o invisível (os anjos...), que é capaz de sonhar, contrasta com os adultos que vivem isolados, fechados entre quatro paredes ou em si mesmos, adultos inexpressivos, sem vida que deambulam pela cidade de Berlim. Esses perderam a capacidade de desejar e de sonhar. Só a criança é capaz de olhar um ribeiro e ver um rio e olhar um charco e ver o mar. A criança olha a existência como um feixe de inúmeras possibilidades.


1-Talvez, por isso, o circo seja considerado uma arte menor ao contrário das outras artes cujas obras possuem uma durabilidade que transcende o tempo.
2- Um anjo caído, agora actor de cinema, que se encontra em Berlim a rodar um filme sobre a 2ª Guerra Mundial e a quem o desejo já levara a transformar-se em humano).
Peter Falk testemunha a favor da condição humana: «Peter Falk – Não te vejo, mas sei que estás aqui. Sinto-o. Andas por perto desde que cheguei. Gostava de poder ver a tua cara. Olhar-te nos olhos e dizer-te como é bom estar aqui, tocar nas coisas, agarrar. É uma sensação boa. Fumar, tomar café. As duas coisas juntas é fantástico. Ou desenhar. (…) Quando temos as mãos frias, esfregamo-las uma na outra. É bom. É uma sensação boa. Tantas coisas boas! Mas tu não estás aqui. Eu estou. Gostava que estivesses. Gostava que pudesses falar comigo. Eu sou um amigo, «compañero».

3-É quando, no interior do circo, vê Marion, pela primeira vez, que Damiel começa a experienciar o mundo de um modo humano. Por isso, as cores aparecem no filme de Wenders até aqui monocromático

Cristina Janicas
Abril de 2010

As Asas do Desejo III
Der Himmel über Berlin: Wim Wenders, 1987


O Cinema que convoca o cinema: evocação da memória

A memória é um tema igualmente central neste filme. Uma personagem fundamental é o velho narrador, Homero, que surge no princípio da narrativa na biblioteca, lugar dos anjos e do saber acumulado. Esta personagem é a memória e a história sem as quais não haveria construção de um futuro... E o cinema é uma das armas contra o esquecimento.
O auto-intitulado narrador tem a memória da Segunda Guerra e de Berlim antes dela. Deseja voltar a Potsdamer Platz (destruída pelos bombardeamentos); por isso, caminha e procura. Ele procura a história, tenta reconstruir a cidade, imaginando os espaços que frequentou no passado. Mas restam apenas o vazio e as memórias. A memória permite o diálogo do passado com o presente mas dá-nos conta mais uma vez da transitoriedade e do efémero. A invisibilidade do Potsdamer Platz torna-se visibilidade pela memória do velho narrador e pelas imagens filmadas que passam, cortando o presente e que mostram que este presente o é em função de um passado que já foi mas que o cinema pode sempre actualizar... por isso Peter Falk está em Berlim a filmar a Segunda Guerra... contra o esquecimento.

(…)

Este filme é composto de fragmentos... de espaços da cidade, de interiores de edifícios, de olhares de crianças, de movimentos de pessoas, de pensamentos, de livros, de quiosques, de bares, de ruínas, de comboios, de carros, de músicas, de imagens documentais da destruição da guerra, do Muro de Berlim… Parece montado com a lógica do zapping. Mas, não serão a memória e a história construções sempre fragmentadas?
Os fragmentos de memória e de história de que é feito «As Asas do Desejo» são testemunhos da condição humana. Como os anjos de Wenders são testemunhas, espectadores do curso da história: «Quando Deus, infinitamente desiludido, fez preparativos para se afastar para sempre da Terra e abandonar a Humanidade ao seu destino, aconteceu que alguns dos seus anjos o contrariaram e intervieram em favor da causa dos homens: devia dar-se-lhes ainda mais uma oportunidade.
Deus, irado com o seu protesto, desterrou-os para o então mais terrível lugar do mundo: Berlim.
E, depois, afastou-se.
Tudo isto teve lugar no tempo que hoje se designa por «últimos anos da guerra».
E assim, estes anjos caídos na «segunda queda dos anjos», estão presos, desde então, nesta cidade, para sempre, sem esperança de salvação ou mesmo de regresso ao céu. Estão condenados a ser testemunhas, eternamente, nada mais do que espectadores, sem sequer poder influir o mínimo sobre os homens ou interferir no curso da história. Nem sequer um grão de areia pode ser movido por eles.»


2- Wim Wenders (2010), Wim Wenders, A lógica das imagens. Lisboa: Edições 70, p.120


Cristina Janicas
Abril de 2010

terça-feira, abril 13, 2010

Pedro Costa

O Prémio da Universidade de Coimbra foi este ano atribuído, ex-aequo, a dois nomes centrais da nossa cultura e da nossa arte: Almeida Faria e Pedro Costa.
O percurso de Pedro Costa tem suscitado um grande interesse por parte da crítica e alcançou um reconhecimento internacional que atingiu já uma dimensão de manifesta notoriedade e o situa entre os autores mais inovadores do cinema contemporâneo.
O cinema de Pedro Costa, o seu modo de o fazer, nasce de uma cinefilia confessada. Que não se cinge a uma escolha restrita de cineastas, uma espécie de cânone pessoal em que quisesse reivindicar a sua própria presença, mas se estende por uma longa lista que inclui, naturalmente, como ele próprio esclarece, o cinema de onde vem: o de Godard, de um lado, e o de Straub e Danielle Huillet, do outro.
Em minha opinião, mais de Straub e Huillet que de Godard ou, pelo menos, de algum Godard. Porque se é certo que a obra de Pedro Costa, como a de Godard, se não enquadra numa filiação da ontologia baziniana, ela também se distingue, creio, do tipo de ruptura como a que é exemplificada pelo Godard posterior ao Maio de 68, aquele que proclama ce n’est pas une image juste, c’est juste une image. Ora os filmes de Costa não buscam apenas uma imagem, mas uma imagem que seja o mais próximo possível da “verdade” (seja o que for que tal significa e reconhecendo o autor que a palavra é difícil), o mais próximo possível de algo nu, não maquilhado nos seus sentimentos. O cineasta expressa bem esta ideia numa entrevista em que define como uma sua preocupação constante tentar que um plano seja realmente um plano e não apenas uma imagem … ou só um enquadramento interessante, ou uma composição. E acrescenta querer que essa imagem seja um sentimento. Quando uma imagem não é um sentimento creio que não existe (cito de cor).
É justamente ao visar este objectivo que Pedro Costa remete para a sua própria filiação cinematográfica, confessando: E eu só vejo isso em pessoas como o Chaplin ou o Buñuel o Straub, o Renoir, o Mizogushi… tantos, quer dizer, há milhares. Concluindo: é nessa tradição, é nesse ofício que eu gosto de trabalhar, mas também não sei outro.
Há nestas afirmações dois aspectos que me tocam particularmente:
Em primeiro lugar, a confissão de que a lista dos que o marcaram, a lista dos que têm marcado a história do cinema, é quase ilimitada (“há milhares”) revela não só uma grande humildade de quem se considera apenas um no vasto universo de cineastas, mas também um profundo amor pelo cinema, por uma tradição em que ele escolhe integrar-se e que engloba o cinema na sua dimensão histórica total.
Em segundo lugar, o entendimento do cinema como um simples ofício, aquele, justamente, em que ele gosta de trabalhar, o único em que sabe trabalhar.
É neste ofício que Costa trabalha com um rigor e uma austeridade porventura não distantes das de Bresson, preservando uma incondicional coerência formal e temática que lhe permite construir uma escrita fílmica única, pessoal e intransmissível.
Uma escrita que nos interpela tanto no olhar sobre artistas em trabalho (Straub e Huillet trabalhando um filme, Jeanne Balibar trabalhando as suas canções) como no desamparo sem fim de personagens desenraizadas, corpos que são mapas das feridas abertas pela exclusão, figuras que habitam as trevas que o resto do mundo lhes reservou, mas onde elas não prescindem de ser gente. Gente frágil, é verdade, mas gente.
É esse mundo de sombras que Pedro Costa vive com a sua câmara, em busca de uma luz, por vezes apenas de um simples e frágil traço de luz que (parafraseio um verso de João Miguel Fernandes Jorge) risca tudo de branco e revela o que julgamos ainda não ser…
É perturbador o modo como Pedro Costa convoca a nossa condição de espectadores e interpela a nossa própria condição humana. Sem condições nem pressupostos. Como ele confessa, ninguém sabe o que se vai passar quando se liga uma câmara de filmar. Nunca ninguém soube e é por isso que o cinema é grande.
Ne change rien, o seu filme mais recente, apropria-se do título de uma canção de Jeanne Balibar, mas é também uma citação ou um eco da voz de Godard em Histoire(s) du Cinéma. A frase de Godard, que não acaba aqui é, por sua vez, uma inversão da declaração do Príncipe Salinas, o aristocrata lúcido de O Leopardo: é preciso que alguma coisa mude para que tudo fique na mesma. Godard subverte a frase e o seu sentido, propondo uma alternativa: ne change rien … pour que tout soit différent.
Pedro Costa não muda nada, não muda o cinema, não quer mudar, porque o ama. Mas nos seus filmes tudo é diferente. E o cinema, sem mudar, torna-se, com Pedro Costa, de uma beleza diferente.

Abílio Hernandez

segunda-feira, abril 12, 2010

I’m back!

Cheguei a pensar que Senso adormeceria pesadamente algures numa espécie de saco de cama virtual dos blogues, mas os meus alunos do seminário de Cinema e Outras Artes acharam por bem abaná-lo e obrigá-lo a abrir os olhos. Espero que fique bem desperto por longo tempo.
Senso começou com a disciplina de Análise de Filmes, continuou com a de História e Estética do Cinema e conhece agora uma nova fase, a primeira associada a um seminário de mestrado.
Cabe pois aos “seminaristas” deste ano provar que merecem continuar o trabalho dos “analistas”, dos “historiadores” e dos “estetas” dos anos anteriores. Pela minha parte, procurarei remeter-me ao papel de Fast Eddie Felson, the Hustler: I’m back!

Abílio Hernandez

segunda-feira, abril 05, 2010

«Hoichi, the earless»

«Hoichi, the Earless» (62’) constitui o terceiro segmento da obra de Kobayashi (1916-1996), Kwaidan (1964). O filme é uma adaptação de quatro contos de Lafcadio Hearn, «Kwaidan: Stories and Studies of Strange Things» que por sua vez constitui uma apropriação de contos japoneses, ou seja, de um fragmento da cultura japonesa.
«Hoichi, the Earless» cruza duas narrativas que são duas tragédias, a tragédia de Hoichi, um jovem e solitário monge, executante de biwa, e a tragédia do clã Heike.
Tragédia 1
A luta pelo poder no Japão é o motivo ou razão que conduz à morte, no mar de Dan-no-ura, do clã Heike. O núcleo central desta narrativa é, pois, a relação entre o poder e a morte.
Tragédia 2
A tragédia de Hoichi tem o seu núcleo no sofrimento que é necessário vivenciar para alcançar um plano artístico superior e para se ser reconhecido pelo talento e pela criação artística.
A criação estética quase nunca é indolor. A história de Hoichi pode ser compreendida como uma metáfora sobre a criação artística. O sublime, por vezes, só pode ser alcançado com sofrimento quer físico, quer psicológico. As sucessivas noites em que Hoichi é convocado a tocar permitem-lhe desenvolver o seu talento mas enfraquecem-no, esgotam-no. Fisicamente, só quando perde violentamente as orelhas a sua história começa a ser conhecida e é a partir daí que ele alcança o reconhecimento e a fama. No fim, Hoichi toca biwa e continua irremediavelmente só. Tal como quando cego tocava para os fantasmas do clã Heike continua a tocar para quem não vê e que silenciosamente ouve a sua música.
A tragédia de Hoichi faz-nos lembrar a tragédia de Vincent Van Gogh (1853-1890).
Para levar a cabo estas duas narrativas, o cinema de Kobayashi convoca outras artes com as quais dialoga: literatura, música, teatro e pintura.
… Literatura – Kobayashi convoca a rica tradição oral de contos populares japoneses, na adaptação de Lafcadio Hearn;
… Música – é o som melancólico e profundamente triste da biwa que, ao longo do filme, sublinha a tragicidade e o sofrimento, nucleares das narrativas que nele se entrecruzam;
… Teatro – Kobayashi encena a batalha de Dano-no-ura com uma evidente teatralidade que, em última instância, pretende retirar qualquer realismo à cena. Os actores representam à frente de um cenário pintado de modo expressionista, que representa um céu vermelho e amarelo. O cenário é, ainda, composto por estandartes vermelhos e os actores aparecem com os rostos brancos, numa clara referência ao teatro Nô.
A cena teatral montada por Kobayashi lembra o Teatro da Crueldade de Antonin Artaud (1896-1948), que sabemos ter influências orientais. A batalha encenada parece uma dança de guerreiros e é sublinhada por gestos precisos, música, olhares e fisionomias faciais estilizadas, posturas angulosas, gritos, cores fortes, vestuário belo e mágico, máscaras e dissonâncias. Imagens que não nos deixam indiferentes;
… Pintura – a tragédia do clã Heike é contada recorrendo à poesia/música de Hoichi, pela representação teatral da batalha final (teatro dentro do cinema) e também por imagens de quadros e tapeçarias sobre a batalha. Estas imagens vão-se misturando com as sequências filmadas.
As pinturas japonesas jogam com cores fortes e quentes. Mas a pintura é convocada de outro modo: este é um filme marcadamente expressionista. Algumas das imagens lembram-nos Edvard Munch (1863-1944) ou Van Gogh. O céu da batalha é o céu do Grito de Munch e a paisagem que circunda o mosteiro onde Hoichi vive lembra-nos, por exemplo, a paisagem do Semeador de Van Gogh. No expressionismo, a pintura é dramática, marcada pela subjectividade de um eu que pela cor quer expressar sentimentos.
Kobayashi recorre a cores irreais, que dão forma plástica à dor, ao medo, à solidão, à vingança, à beleza e ao sublime. E de que cores é feito este filme? Das cores intensas, fortes (vermelho e amarelo), afinal… das cores da tragédia.

Uma última nota: «Hoichi, the Earless» cruza dois tempos, o sagrado e o profano: tempo profano, humano, corruptível com o tempo divino, perene e incorruptível. A inscrição no corpo de Hoichi de um texto sagrado transporta-o do profano para o sagrado ou permite a manifestação do sagrado no profano, tornando-o numa espécie de hierofania… uma hierofania imperfeita pois, de fora, ficam as orelhas que, deste modo, não são protegidas pelo sagrado.
Fica uma questão: não será a arte de Hoichi ou qualquer arte uma hierofania?

Cristina Janicas

Estudos Artisticos volta a apresentar...


Bem vindos a mais um blogue sobre cinema!!!

Esta introdução não é das melhores, mas não sabia realmente como começar. Já ando há alguns dias, talvez duas semanas para escrever esta introdução, mas não conseguia arranjar uma ideia luminosa que achasse digna de ser introduzida no "reacender" deste blogue. Sem ideias fantásticas resolvi escrever sem pressões...

Como está explicado no canto superior esquerdo da página, este blogue foi criado por alunos de Estudos Artísticos algures em tempos que já lá vão. Ao longo de, não sei bem quanto tempo, tentaram sempre dar dinamismo ao blogue colocando e postando textos sobre cinema, mas após uma explosão de criatividade descrita em palavras sobre a 7ª arte, lá veio o período refractário. Então, passado quase um ano do último post, no âmbito de um seminário do mestrado em Estudos Artísticos intitulado Cinema e Outras Artes, o pioneiro deste blogue Doutor Abílio Hernandez e os seus estimados alunos decidiram, mais uma vez, tentar dinamizá-lo.Sendo assim, deixo o desafio a todos aqueles que gostariam de marcar a sua posição sobre cinema a escrever para este blogue...

Sem nada mais a acrescentar, resta desejar uma boa semana e dizer que não tenham receio de participar porque sem os textos não existe blogue.

Beijinhos

Paula Saraiva
PS- Esta fotografia foi tirada por Micaela Santos em Paris no Café de Flore. Ela chamou-lhe a Simone de Beauvoir do século XXI...

quarta-feira, maio 16, 2007

Alemanha, Ano Zero

Alemanha, Ano Zero. Não existe descrição mais precisa sobre o que se passou depois do Holocausto. O duro pós-guerra, a depressão, a fome, representam um período cheio de dor, de sentimentos que se dividem entre a alegria da liberdade e o desespero que o fim da guerra traz. O começar do zero exigido pelo Futuro é tão ou mais doloroso que a própria guerra. Berlim está destruída, o que antes eram edifícios são agora destroços que se espalham pela cidade. As pessoas vivem na alienação total, tentando apenas sobreviver até ao dia seguinte. Não deixa de ser um campo de batalha, um campo de batalha onde os mais fracos, que deviam ser protegidos, são deixados para trás pela vida dos que são fortes. Irónico. A ideologia que devia terminar com o fim da guerra ainda persiste na vida dos que lutam para sobreviver, dos que não são soldados.

Edmund é um jovem rapaz, um menino de 12 anos, representa o estereótipo da criança ariana e é submetida aos horrores da guerra que fez a sua apologia. Além disto, a criança loira tem uma identificação quase imediata com um Anjo, que ironicamente se torna demoníaca, monstruosa. É, portanto, nele que se concentram todas as dualidades, os extremos de carácter, o Anjo e o Demónio, a prova do indivíduo partido, dilacerado. A sua duplicidade retira-lhe a identidade, retira-lhe aquilo que faz do Homem o que ele deve ser. Apesar de ser uma criança tem as responsabilidades de um homem, é o único que sustenta e suporta a sua família e, portanto, vive num limbo entre a criança e o adulto, sem nunca chegar a ser um, verdadeiramente. Por pertencer a dois mundos, Edmund não é reconhecido em nenhum deles. É-lhe negado esse direito e esta realidade fica bem clara em dois momentos. Num primeiro momento, Edmund é expulso de um campo de colheitas quando os camponeses suspeitam da sua idade, protestam, dizendo que ele lhes tira o pão das suas bocas.
Como precisa de arranjar outra forma de sustentar a família, começa a vender coisas no Mercado Negro onde mais tarde encontra um antigo professor que lhe arranja um trabalho, que denuncia a sua ideologia política. O rapaz devia ir até ao Edifício do Chanceller, em ruínas, e pôr a tocar um velho vinil com discursos de Hitler, que seriam depois vendidos a soldados como souvenirs..
Dias depois, quando descobre que o seu pai voltará a casa, depois de ter estado num hospital, Edmund entra em desespero e envenena o seu pai. Aqui a exaltação de Edmund como ser duplo é evidente, note-se a frieza e os gestos limpos e precisos com que o rapaz prepara o chá para o seu pai. E, depois, como ajuda o seu pai a tomar o veneno recebendo elogios pela dedicação e preocupação que demostra; este gesto define-o como um bom rapaz. Amor ou sobrevivência?
A partir daqui Edmund não voltará a ser uma criança, e isto fica claro quando, num segundo momento, um grupo de crianças que brincam com uma bola não deixam Edmund participar no jogo porque ele não pertence ali, aquele não é o seu lugar e as crianças não o reconhecem como igual. Esta falta de identidade, o não reconhecimento – impacto profundo no indivíduo – acentuam o desespero do rapaz, desencadeando um processo irreversível de alienação que o leva ao suicídio, após a morte do pai. Depois disto, o fim trágico deixa-se adivinhar, dando lugar aos momentos mais intensos e dramáticos e simultaneamente aos mais belos de todo o filme. Daqui destaco três situações. A primeira em que ele descobre um pequeno objecto de ferro e brinca, como as crianças fazem, e depois aponta-o à cabeça, como se este fosse uma arma – afirmação da não-infância. A segunda, em que espreita pela janela de um edifício destruído e vê a sua família pela última vez, o belo contraste de luz e sombra determina quem vive e quem vai morrendo. E a terceira, quando com cuidado limpa o casaco sujo de pó e o pendura num pedaço de metal como se fosse um bem precioso, o casaco é também um elemento representativo do homem, aqui Edmund despe, simbólica e definitivamente, aquilo que o identifica com um homem, deixando para trás um dos seus dois lados na esperança de recuperar o que nunca lhe pertenceu, a existência como indivíduo.
É impossível ficar-se indiferente a toda a carga dramática que envolve o suicídio de Edmund, que apenas se parece como uma criança. É ele que sustenta a sua família, é ele que se propõe sempre a resolver os seus problemas e os dos outros, é ele que mata o pai e em seguida suicida-se, sempre como um homem.

Tal como o pós-guerra, o filme de Rossellini apresenta um sem número de contradições e ironias da sociedade. O filme tem uma expressão quase documental, ideia confirmada pelo próprio quando afirma "as coisas estão lá, para quê manipula-las”, mas o cuidado que ele tem com o pormenor, com este tipo de pormenor, tornam as cenas mais imponentes, mais devastadoras, destruidoras e a brutalidade dura e cruel da realidade que aborda transmite ao espectador uma sensação de desconforto que se prolonga até muito depois dos créditos finais passarem na tela negra.
Joana Barbedo, dARQ

quarta-feira, dezembro 13, 2006

O espaço e o lugar (e o sujeito)

Se pensar em espaço a primeira coisa que me lembro é do universo, do espaço sideral, uma coisa meia abstracta, quase etérea. Esta é a ideia que o termo “espaço” me transmite. “Lugar” é concreto, já não se trata de uma atmosfera estranha, quando dizemos lugar já o vivemos de alguma forma, faz parte da nossa identidade, da nossa história enquanto indivíduos. Uso “lugar” quando me refiro a um sítio que gosto, onde já estive ou quero ir. Uso “lugar” quando me refiro ao sítio onde nasci; o lugar onde nascemos é o primeiro lugar em que existimos, é o primeiro de muitos lugares que farão parte da nossa memória, embora não nos lembremos como é existir pela primeira vez. Este lugar imprime-se no ser é um lugar-memória, simbólico, representativo do inicio da construção do “eu”.
Os lugares são feitos de pessoas, memórias e identidades. O espaço só possibilita o lugar quando é vivido, só o sujeito o torna possível. Por sua vez o lugar provoca sensações diversas nesse sujeito, que personifica e projecta novas experiências criando, ainda que inconscientemente, novos espaços de significação. Portanto, um mesmo lugar pode compreender diferentes espaços, sendo que aqui o espaço é representativo da projecção das atitudes/sentimentos do sujeito.
Em Suzhou River, o lugar onde Mardar prende Moudan permite o espaço do amor e do ódio. Primeiro, Moudan pensa que Mardar a leva lá para estar com ela e quando percebe o que realmente se passa, aquele lugar, que é um espaço de amor torna-se o espaço do ódio. Este é um exemplo (relativamente) simples dos diferentes tipos de espaço que o lugar pode conter. Contudo, no cinema o espaço e o lugar existem de uma forma, talvez, mais complexa que na realidade porque o cinema permite o impossível.
Aristóteles define lugar como “o espaço no qual um corpo é colocado”. O lugar só existe porque existimos. Podemos, então, reclamar o título de “fazedores de lugares”? Talvez, mas a nossa relação com o lugar é demasiado complexa para ter a certeza. Só existimos num lugar e o lugar só existe se existirmos nele, há uma relação entre o espaço, o lugar e o sujeito em que todos estão em constante mutação.

Joana Barbedo

dARQ


terça-feira, dezembro 12, 2006

Identidades: O Rio Suzhou, de Lou Ye

O filme trata de identidades, confundidas, trocadas, secretas, perdidas, encontradas, novamente perdidas para de novo se encontrarem…

A primeira identidade que nos é apresentada neste filme é a do rio Suzhou. Ele é, provavelmente, a personagem principal, pois é a partir dele que surge esta história de amor, tal como dele nascem inúmeras histórias de Shanghai. A identidade de Shanghai é-nos apresentada de uma forma diferente da cidade moderna que conhecíamos. Aqui, vemos uma Shanghai escura, de arquitectura extremamente degradada, cujo rio sujo é o cenário da vida de gente pobre que dele subsiste ou que nele habita.
O narrador é uma personagem deste filme e a sua identidade é muito complexa, não conhecemos o seu nome nem o seu aspecto, pois é ele que está a filmar. A personagem de Mardar e a do narrador anónimo são a certa altura confundidas devido à obsessão que ambos têm pela misteriosa Meimei.
A personagem de Meimei é ambígua; tanto pode parecer uma perigosa sedutora com um passado desconhecido, como uma rapariga romântica. Moudan é também uma personagem estranha; pode ser uma jovem estudante naïf, quase infantil, como uma adolescente sedutora e madura. Ambas têm em comum a entidade “sereia”; tanto a boneca que Mardar oferece a Moudan no seu aniversário como a imagem da sereia Meimei a nadar no seu aquário, são símbolos de esperança e optimismo, no meio da “sujidade” de Shanghai. Estes contrastes ilustram a incompatibilidade entre a fantasia romântica e a realidade objectiva.
Depois de o narrador nos contar a história da busca obsessiva de Mardar por Moudan, e da crença dele que Meimei é a rapariga que procura, o espectador oscila entre a hipótese de Meimei e Moudan serem realmente a mesma rapariga e a de haver duas raparigas idênticas em Shanghai.
No fim do filme, o narrador não cumpre aquilo que afirmara a Meimei no diálogo do início, e não a procura quando esta parte, como Mardar procurou Moudan.

Este é um filme sobre identidades, necessidades e desejos, bem como da nossa habilidade para reinventar o mundo à nossa volta de acordo com o que queremos.
Joana Pimenta
dARQ

terça-feira, dezembro 05, 2006

A SOLIDÃO QUE EU NÃO DESEJO

“Crazy ,
I’m crazy for felling so lonely
I’m crazy,
Crazy for felling so blue”
(...)

Crazy, written by Willie Nelson, performed by Patsy Cline


É um estado de espírito ou um sentimento, como lhe queiram chamar, que aparece sem aviso, bem devagar, vai-se instalando e tomando o controlo da situação, sem darmos por isso apanhou-nos na sua teia. A solidão, há quem acredite, é o castigo de Deus, o Inferno na Terra, pior que a própria morte. Esta é, talvez, a maior das fragilidades humanas (quero aqui lembrar que muitos castigos e torturas passam pela ausência de contacto humano, de troca de palavras e/ou afectos). Depois dela resta-nos a loucura, depois da loucura só a morte e não há nada mais triste que morrer sozinho, depois disso a memória de quem existiu apaga-se porque não há quem a recorde. A solidão é o pior dos castigos.

“A Streetcar Named Desire” aborda o tema da solidão em (quase) todas a personagens, homens e mulheres, das mais frágeis às mais fortes, das principais à secundárias. Todas elas têm em comum o medo da solidão.
Blanche vive numa espécie de redoma de vidro, criou um mundo próprio onde todas as suas fantasias são possíveis. Ela vive desesperada em busca de uma família, de um homem que a ame. Procura preencher esse vazio, essa falta, com aventuras, já nesta altura tem medo de estar sozinha. Quando conhece Mitch, pensa que pode ser ele o homem que procura. Ou, melhor dizendo, Blanche aceita casar-se com Mitch em desespero de causa. Quando se apercebe que isso não vai acontecer, e depois de ter sido violada por Stan, a loucura toma conta dela. No fim, morre para o mundo real, não passa de um fantasma, de um fragmento humano.
Stan receia tanto a solidão que cada vez que Stella sobe a escada ele grita, desesperado, por ela. Os dois receiam ficar sem o outro, e, na minha opinião, Stella volta para Stan pois, apesar de ela já não estar sozinha, o desejo (e talvez o amor, ou hábito) dos dois vai acabar por vencê-la.
Assim acontece com o outro casal, o que os une é apenas o medo da solidão. Eles são o futuro de Stan e Stella.
A mãe de Mitch, que o espectador nem chega a conhecer, tem medo pelo filho. É a única personagem que tem medo por outra, porque sabe que vai morrer e o filho estará com ela. Por outro lado Mitch é seu filho e ela preocupa-se com o seu futuro, teme que fique sozinho quando ela morrer.
A solidão é o medo maior e as mulheres [e os homens] fazem tudo para não ficarem sozinhas[os].

Joana Barbedo
dARQ

segunda-feira, novembro 27, 2006

Peeping Tom


O filme Peeping Tom (1960) é relativamente tardio na carreira do seu realizador inglês Michael Powell. Relativamente tardio não tanto pela idade que Powell tinha na altura mas porque, de facto, depois deste filme a sua obra, que durante as décadas anteriores de 40 e 50 fora bastante abundante, torna-se esparsa senão mesmo episódica. A razão do fenómeno estaria associada ao escândalo que o lançamento do filme causou na altura. A crítica achou o filme execrável talvez, podemos pensar, pela escolha do tema.

Como o título sugere, o filme trata o voyeurismo, mas um voyeurismo perverso, sádico. A sua personagem central, Mark (Karlheinz Böhm), é a dum jovem operador de câmara que nos tempos mortos fotografa mulheres nuas para depois vender – até aqui tudo se integra perfeitamente no socius. A situação complica-se quando Mark começa a matar essas mulheres como forma de prazer sexual. Assim, a história do filme gira em torno da perversão do olhar associada à indústria das imagens, ao cinema, e, de forma mais geral, aos mecanismos do olhar. Neste “programa” que o filme propõe, a dada altura parece clara a tentativa de associação e identificação do nosso olhar de espectador com o de Mark, colocando-nos numa posição incómoda mas poderosa. Somos forçados a pensar o confronto ou o reconhecimento da relação entre ver e participar.
É na verdade este lado auto-reflexivo do filme que se mostra mais interessante. Entre outras, existem duas cenas que me chamaram mais a atenção. Passam-se ambas no estúdio de cinema onde Mark trabalha. A primeira refere-se ao momento em que, antes de filmar a morte da actriz substituta, Vivian (Moira Shearer), entre aquele jogo de “quem vê quem, quem” Mark diz «the result must be so perfect that even he would approve». Vivian pensa que ele se refere ao filme (dentro do filme) em que ela colabora, mas ele falava do seu pai – que, como sabemos pelas imagens “documentais”, é na realidade o próprio Michael Powell. Há toda esta quase paródia que me parece muito atraente no filme.
A outra cena, já depois do assassínio de Vivian, passa-se durante um ensaio no mesmo estúdio em que uma actriz assustadiça tem que escolher uma caixa, nessa caixa, sabemos nós e sabe Mark (um exemplo dessa identificação de olhares de que falava no início), está o cadáver de Vivian. O realizador dentro do filme informa que esta deverá ser uma cena cómica. E ela é cómica para nós, para os intervenientes desavisados ela é uma cena de terror.
Nesta cena nós não temos medo e não nos aterrorizamos porque sabemos o que se vai passar. Aguardamos pelo contrário com expectativa o terror no rosto daquela actriz ao se deparar com o corpo de Vivian. E há aqui um duplo, talvez um triplo prazer. Um gozo do conhecimento (=poder), mas também o gozo do suspense que só o cinema nos dá em tais doses. Nós sabemos o que vai acontecer, mas não sabemos como. E ainda um terceiro gozo, um gozo mais intelectual em perceber. Perceber a ironia, o programa por detrás desta cena.
Há, claro, uma questão moral que aqui se levanta (hoje com relativo menor escândalo), e que tem toda a pertinência. A generalidade os espectadores de cinema admite ter prazer com cenas que considere violentas ou criminosas por saber tratar-se apenas de um filme – a inocente Helen (Anna Massey) coloca precisamente essa questão, ela diz a dada altura «é horrível mas é só um filme, não é?». Mas será essa distinção assim tão clara? O espectador é apenas um “Peeping Tom”? Que espécie de cumplicidade se estabelece entre “quem vê” e “o que/quem é visto”?
Eu não me acho absolutamente incapaz de sentir prazer com cenas que considere moralmente reprováveis, abjectas ou vis. Já Santo Agostinho nas suas Confissões, há mais de 1500 anos, discutia este assunto, opondo-se à inclusão de certo tipo de cenas na representação teatral por achar que fomentava esse prazer pelo baixo, pela violência. Hoje esse interesse continua a ser visivelmente explorado desde a forma mais banal (nos jornais televisivos, por exemplo) ou em formas requintadíssimas (vários exemplos na literatura de Sade ou Bataille). Portanto, saber isso de nós, ter essa consciência ajuda-nos, julgo eu, a conhecer melhor os limites e capacidades do humano. E, como se sabe, muitas vezes o conhecimento é perturbador…


Catarina Maia

terça-feira, novembro 21, 2006

O Cavalo Branco de Mr. Powell



Desde cedo os adultos, cheios de boa vontade e esmero, nos apresentam ao mundo dos contos de fadas. É claro que estes contos têm sempre uma moral e quase sempre um final feliz: o bem prevalece sobre o mal; o trabalho, a honestidade e a dedicação compensam; depois da tempestade vem sempre a bonança; a gula é um dos sete pecados, e não se deve cair em tentação, como o João Ratão; se as meninas forem bem comportadas têm direito a uma vida de princesa (tal e qual a Cinderela) com castelo, vestidos bonitos e o mais importante: um príncipe com cavalo branco.
Toda a gente conhece as virtualidade e possibilidades dos contos de fadas, reportemo-nos agora a “The night of the hunter”. Desde cedo Mr. Powell aparece como o príncipe que salva Willa da solidão e é o pai perfeito para os seus filhos. E mais tarde, quando procura John e Pearl, faz-se deslocar a cavalo. Não é estranho que um homem como Powell escolha um cavalo e não um carro (que podia facilmente roubar a alguém) para fazer a sua cruzada? É que esse cavalo não é um simples cavalo, é o cavalo-branco-dos-contos-de-fadas, que vive no imaginário feminino, e que é sempre esperado com grande expectativa, pois transporta o príncipe que destrói o mal, salva a donzela e possibilita o famoso “foram felizes para sempre”. O cavalo branco transporta-nos, assim como as tatuagens “LOVE” e “HATE”, à “complexidade e contradição” de Powell.
Se por um lado ele tem um ódio profundo à mulher e a tudo o que faz parte do universo feminino, por outro desloca-se num cavalo branco (que faz parte desse universo), qual príncipe encantado que vagueia em busca da sua amada, que traz a felicidade e a paz. E, embora este cavaleiro andante não traga nada de bom, é visto por três personagens (Willa, Ruby e Pearl) como príncipe e curiosamente todas elas procuram o afecto de uma figura masculina. A primeira vê-o como o companheiro, o protector – apesar de (julgo eu) nunca dizer que o ama. Ruby, que depois de ter sido seduzida com uma revista e um gelado(!!!!!), o vê como o homem amado, muito próximo do fim diz: «I love him». E, finalmente, Pearl que o vê como o herói, associando-o à figura paternal e também ela demonstra o seu amor por Powell, usando a mesma expressão de Ruby: «I love him».
Apesar de despertar o amor de três personagens que se deixam enganar pelo seu charme, Powell encontra pessoas imunes ao seu feitiço sedutor: John, porque sendo do mesmo sexo tem uma visão clara do vilão, e Rachel, que não tem nenhum desejo ou afecto por Powell, talvez porque já não acredita em contos de fadas e não se deixa enganar pelo primeiro homem que vê num cavalo branco, pois sabe que nem sempre ‘o hábito faz o monge’, ou melhor dizendo, o cavalo branco nem sempre transporta um príncipe, ou porque ela, ao contrário das outras personagens, não procura mais afectos, vive com todas aquelas crianças e elas são o seu amor. Por seu turno, John encontra o amor que nunca teve num lar onde ele é o único elemento masculino.


O universo onírico dos contos de fadas, cheio de subtilezas e delicadezas, faz-nos acreditar no impossível. “The night of the hunter” é um conto de fadas para adultos, é por isso mais duro e complexo o código simbólico e metafórico. Contudo não deixa de recorrer ao final feliz e cheio expectativa do conto infantil, onde o amor – em qualquer das suas formas – acaba por ser o mais importante.
Joana Barbedo
dARQ

sábado, novembro 11, 2006

SENSO

O Sétimo Selo

Det Sjunde Inseglet


Na minha opinião este filme é como que uma interpretação da vida de Ingmar Bergman. Como pessoa amargurada, dá-nos a perceber através de um filme pessimista e de critica à sociedade, que começa a perder a esperança de uma salvação ou na crença de algo que não vê. Muitas das vezes em oposição ao divino e em atribuição de todo o mal que acontece no mundo terreno, a luz, elemento fundamental neste filme, pelo facto de ser um filme elaborado nos anos 50, a preto e branco, revela-nos a morte em várias ocasiões. É tempo de peste negra, e toda a gente teme pela sua vida, mas será que após uma breve diversão, as pessoas não esquecem o facto de esta doença estar a colher o mundo?... a cena da estalagem fala por si.


Toda a acção gira à volta de um jogo de xadrez, proporcionando mudanças claras do clima sentido. Sir. Antonios Block, cavaleiro que partira para as cruzadas regressara ao seu país. A acção deste filme começa precisamente aí, com a águia do apocalipse a pairar sobre a praia, aonde jazem o cavaleiro e o seu escudeiro, Jons, que compensa todo o carácter pensativo e reflectivo do seu amo. Jons é prático, forte, é visto como o herói que nunca vemos o cavaleiro ser. Encaro este personagem como um segundo narrador, que ao longo de toda uma cruzada contra a morte, vai relatando o seu percurso através de pequenos eventos, porém recusando a morte como certeza.


O início do filme não é escolhido ao acaso pois reflecte a ligação entre terra e água, presente nas sete trombetas do Apocalipse. É nesta altura que o cavaleiro procura a água para se benzer e rezar, mas após tomar a pose para tal, desiste e instantaneamente aparece a Morte.


Ao longo do filme podemos ver duas histórias entrelaçadas de maneira inteligente, pois a história do cavaleiro e do seu escudeiro é ligada a uma, em paralelo, de uns saltimbancos, Jof, Mia e Mikael. Jof é o único personagem que consegue vislumbrar cenas divinas, ou mesmo a Morte, a quando ela se prepara para fazer cheque-mate ao cavaleiro. Jof é um personagem que representa os tolos, aqueles que ainda são puros e acreditam na salvação e no mundo livre e que apesar de ter uma vida difícil, vive-a sendo feliz assim mesmo, ao lado de Mia (que representa a incredulidade), e apesar de serem opostos, este casal nunca é retratado em separado, é sempre visto como uma família. É muitas vezes visto como José, Maria e o Menino Jesus.


Com o andar da caravana aonde Jof trabalha, a morte depara-se com o grupo, graças ao chefe da companhia de teatro, que em simbologia desse presságio, coloca a máscara junto à caravana e essa máscara não mais será removida de tal posto a não ser após o sacrifício do cavaleiro, perdendo de propósito, ou melhor dando-nos essa ideia, pois ludibriar a morte ninguém consegue e mesmo sendo um jogo de xadrez um jogo de atenção, a Morte sabia exactamente quando e onde deveria fazer cheque.


O final do filme é importante pois existe um retorno da acção à praia, ou seja nota-se um ciclo na história e é ao alvorecer que Mia e Jof alcançam este local. Esta cena faz lembrar um pouco do renascer, é como um começar de novo. E Jof avista a dança da morte, várias vezes retratada ao longo do filme através de pinturas, até nos panos que cobriam a carroça destes saltimbancos.


Antes de se renderem perante a Morte, uma rapariga, personagem de importância questionável até este ponto, que muitos julgariam que se tratava de uma rapariga muda, mas perante a presença da Morte, esta ajoelha-se e diz: “Tudo está consumado”. O Sétimo Selo refere-se ao ressuscitar dos mortos e é um pouco o que a dança da morte representa, todos os que não encontraram arrependimento, ou aceitaram inevitavelmente a morte, tomam parte desta dança macabra.


Após uma análise detalhada desta última dança, podemos identificar que Raval, e a rapariga “muda”, não constam dos personagens que executam esta dança.


Pedro Guilherme Gonçalves de Sá Teixeira Chaves

Aluno de arquitectura: Darq - FCTUC

quinta-feira, novembro 02, 2006

O Sétimo Selo

img SÉTIMO SELO
O Sétimo Selo (1957) de Ingmar Bergaman é uma adaptação da peça Trämålning (O Retábulo da Peste), escrita e encenada pelo mesmo autor em 19551. Apesar de muito distinto, da sua base teatral o filme guarda não só o plano da narrativa como alguns dos actores que acompanharam sempre Bergman e nos quais assenta muito do carácter excepcional e singular da sua cinematografia – entre eles Max Von Sydon, Bibi Andersson, Gunnar Björnstrand.

A primeira sequência do filme mostra-nos um céu nebuloso onde paira uma águia negra sob a qual a maré baixa e calma anuncia o nascer do dia. Este início prepara-nos já para o que se segue, uma história difícil em que o mítico se mescla com o real de forma invulgar. Aquilo que poderíamos entender apenas como a representação do nascer de um outro dia, «igual aos demais» como diria Mia (Bibi Andersson), é “corrompido” pela nossa consciência histórica e simbólica. Aquela águia negra é afinal a mesma que o Apóstolo João descreve no Apocalipse (8, 13) como vindo anunciar a calamidade.

Estamos na Suécia do século XIV e Antonius Block (Max Von Sydon) é um Cavaleiro que passados vários anos na Terra Santa, a lutar contra os infiéis nas Cruzadas, volta à sua terra natal, para a ver assolada pela peste, pela miséria e morte. Acompanha-o na jornada o seu Escudeiro, Jons (Gunnar Björnstrand), mas estes dois homens percorrem, em parte, como se verá mais adiante, viagens diferentes.

Logo no início, a Morte (Bengt Ekerot) vem para levar Antonius mas ele diz não estar preparado e faz com ela um pacto: enquanto o jogo de xadrez entre ambos durar ele viverá. Este pacto, este “não estar preparado” parece prender-se com uma busca que o Cavaleiro empreende e sobre a qual ficamos a conhecer melhor os contornos através da cena fulcral em que Antonius se encontra com a Morte numa igreja e, não a reconhecendo no seu disfarce, lhe confessa as suas dúvidas, o seu desejo (assim como os detalhes da próxima jogada de xadrez…). Ele procura, na verdade ele exige um Deus manifesto. Ao mesmo tempo que afirma claramente não querer a fé, mas o conhecimento – ele parece procurar uma verdade (crível, no caso da fé, e passível de ser conhecida, no caso da razão).

Poderíamos dizer que, ao contrário de Jons, a sua viagem é não apenas física mas espiritual. Antonius perdeu a inocência de que Karin (Inga Landgré), a sua mulher, fala no reencontro quase no final do filme. Perdeu a fé inquestionável nos homens e em Deus, e no entanto isso revela-se insuportável para ele. Na primeira sequência do filme vemos Block a tentar rezar mas a constatar que para ele esse era já um gesto inútil, vazio. Ele não é capaz de aceitar o não propósito, o aparente absurdo do universo. Então busca Deus nas sobras de todas as coisas. Procura qualquer indício que revele a sua existência, mas não confia nos seus sentimentos, ele insiste que Deus se lhe mostre. A ele.

A personagem de Antonius encontra-se como que isolada do exterior, aprisionada nas suas dúvidas. Ele é passivo, quase não participa na acção que o rodeia. Das poucas vezes em que intervém é porque o objecto que o desperta está relacionado com a sua busca – como no caso das “bruxas” (na verdade pobres raparigas, vitimas dum obscurantismo fanático e pseudo-religioso) a quem ele faz perguntas sobre o Demónio, visto aqui por Block como uma espécie de atalho que o levaria a Deus. O que o atormenta maioritariamente é pensar que a morte significa o fim, o nada como Jons sugere. Outro caso de interesse é a sua relação com a “sagrada família” que discutiremos de seguida.

Antonius, é-nos dado a saber, nem sempre terá sido assim. Descobrimos mais tarde no filme que ele foi um religioso convicto, que terá ido lutar nas Cruzadas inflamado pelo discurso de um teólogo – (Raval) que agora se transformara num patife. Sabemos que ele foi feliz, livre. Quando ele fala com Mia sobre a sua mulher e o tempo de recém-casados percebemos, ao mesmo tempo, que ele foi livre e feliz e que, no entanto, tudo isso está agora distante, perdido. É neste encontro com aquilo a que chamámos a “sagrada família” – Jof (Nils Poppe), Mia e Mikael – que nos deparamos com a primeira possibilidade real de uma direcção. Block fica muito comovido por esta experiência. Pela primeira vez ele encontra o amor humano, a simplicidade, a fé. Na conversa com Mia ele diz que recordará aquele momento com um sinal. Um sinal de quê?

Entretanto, o jogo com a Morte continua e ela ameaça-o ameaçando esta família. Mais tarde apercebemo-nos da ideia que paira sobre Antonius quando num terceiro jogo, fatal, ele perde com a Morte distraindo-a assim para que Jof possa fugir com a família. A Morte deixa bem claro que ninguém lhe escapa. Nunca. Contudo, aqui lembramo-nos mais uma vez da conversa com a Morte na igreja em que o Cavaleiro fala de um “assunto urgente” uma “acção com significado”, qualquer coisa que ele precisa ainda fazer. Parece haver algo que liga então a acção de Block à sua estratégia de conhecimento. A tentativa para salvar a família poderia ser “esse acto” e o “conhecimento” a descoberta da possibilidade da felicidade no modelo da sagrada família.

Contudo uma questão se levanta: Se o Cavaleiro encontra na sagrada família a resposta para as suas dúvidas, porque continua ele inquieto com a derradeira chegada da Morte? É difícil responder… Pode acontecer que Antonius Block não tenha afinal encontrado nada. Pode ser que face à Morte ele tenha esquecido o “sinal” que dizia ter encontrado junto a Mia. O Sétimo Selo é, de facto, um filme algo pessimista mas não fatalista, no meu entender.

Nesta análise escolhi centrar-me na personagem de Antonius por julgar que o seu percurso é no fundo o percurso do filme, mas a personagem da Morte é igualmente capital e a sua caracterização pode ajudar-nos a perceber melhor este nó górdio em que nos encontramos.

A Morte tem neste filme uma “presença física” muito forte. O seu corpo parece-nos humano, mais importante que isso, as suas acções e esquemas assemelham-se em tudo ao comportamento humano – ela aprecia o jogo (onde é sempre possível ganhar ou perder, caso contrário não seria um jogo) mas é gananciosa e trapaceira (faz tudo para ganhar, inclusive “disfarçar-se” para descobrir, enganando, o truque que o seu adversário pretende usar para a derrotar), tem sentido de humor, etc. Isto faz-nos entrever uma possibilidade de entender a sua figura como, até certo ponto, manipulável ou pelo menos influenciável.

Quando há pouco afirmava que o filme seria pessimista mas não fatalista queria dizer que se o acto de Block não significa afinal nada, porque não tem qualquer influência sobre o que o rodeia, então está de facto tudo ditado – tudo absurdo. Não porque não existe Deus mas, precisamente, porque não existe acção. É necessário que o sujeito se reconheça não como completamente autónomo, nem completamente determinado por outros, mas como um sujeito que assume a responsabilidade agindo. Parece-me ser esta a dolorosa constatação de Antonius Block.



Catarina Maia

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1 Além desta houve uma outra encenação da peça, no mesmo ano, mas desta vez sob a encenação de Bengt Ekerot (encenador de renome e que representa no filme o papel de Morte). Esta peça foi também traduzida para português por Júlio Gesta e editada por Ruy de Oliveira em Três Peças em Um Acto, Porto, 1961.

terça-feira, outubro 17, 2006

Long time, no see


Após longa ausência, aqui estamos de novo, com um novo curso de Análise de Filmes II, constituído, tal como o primeiro, por estudantes das Licenciaturas em Estudos Artísticos e em Arquitectura, duas formações académicas diferentes que podem proporcionar um diálogo imaginativo e útil, até, quem sabe, atingirmos a clairvoyance de Magritte.
Reiniciamos com o mesmo filme com que terminámos o curso anterior: veremos em breve qual foi o impacte.

A disciplina visa dotar os alunos de conceitos teóricos e instrumentos críticos adequados à análise da linguagem cinematográfica, através do visionamento e estudo total ou parcelar de alguns dos filmes que abaixo se indicam.
A análise de cada filme incluirá a sua contextualização na obra do respectivo autor, cinematografia, género e período histórico ou movimento artístico que esteja na sua génese.
A disciplina funciona em regime de avaliação contínua e pressupõe a participação activa e regular dos alunos.

Tema do curso: Identidades

Filmografia (sujeita a alterações):

- Otto Preminger, Laura (Laura, 1944)
- Robert Siodmak, Os Assassinos (The Killers, 1946)
- Elia Kazan, O Eléctrico Chamado Desejo (A Streetcar Named Desire, 1950)
- Charles Laughton, A Sombra do Caçador (The Night of the Hunter, 1955)
- John Ford, A Desaparecida (The Searchers, 1956)
- Ingmar Bergman, O Sétimo Selo (Det Sjunde Inseglet, 1957)
- Alfred Hitchcock, A Mulher Que Viveu Duas Vezes (Vertigo, 1958)
- Pier Paolo Pasolini, Rei Édipo (Edipo Re, 1967)
- John Cassavetes, Uma Mulher Sob Influência (A Woman Under the Influence, 1974)
- John Cassavetes, Noite de Estreia (Opening Night, 1977)
- Spike Lee, Não Dês Bronca (Do the Right, 1989)
- Lou Ye, O Rio do Amor (Suzhou He, 1999)
- David Lynch, Mulholland Drive (Mulholland Dr., 2001)

Abílio Hernandez

segunda-feira, dezembro 12, 2005

A questionação da existência

Este filme trata claramente o tema da questionação da existência - Deus, Morte -, revelando a busca pelo sentido num mundo caótico do séc. XVIII devastado pela Peste Negra.
Um aspecto que dá o mote ao filme é-nos apresentado logo no início: é possível jogar-se com a morte. A personagem principal, o cavaleiro, pede à Morte um adiamento, desafiando-a para uma partida de xadrez na condição que enquanto durasse o jogo, a morte deixava-o viver. Fica-nos logo a ideia de que a vida é um jogo que tem de ser bem jogado pois o seu fim significa a Morte.
A Morte (papel interpretado por Bengt Ekerot) é-nos apresentada como sendo traiçoeira e traidora, pois disfarçada de frade leva o cavaleiro a dizer-lhe a táctica com a qual tencionava ganhar o jogo de xadrez.
Esta sua característica de se poder disfarçar torna-a um ser metafórico, como a apelidou o saltimbanco quando ela personificou o papel de lenhador e o atirou abaixo da árvore.
Mais uma ideia que fica suspensa é a de que nada escapa à Morte, nada escapa ao nosso adversário no jogo que é a vida. Não se pode vacilar…
Fica por saber porquê que a Morte, após ter ganho o jogo ao Cavaleiro, em vez de o levar só a ele, leva também todos os seus acompanhantes…
No fim, a Morte, Suprema, convida-os a dançar tal como na ilustração do artista que pintava a igreja.
A conclusão a que se chega é que a única coisa que temos a certeza é que a Morte existe (ela própria afirma que não tem segredos, não tem nada a esconder); se existe Deus/Diabo, Céu/Inferno, nem o cavaleiro conseguiu averiguar. Só sabemos que esta questão vai acompanhar o Homem para sempre.

Teresa Mota

Deus, Amor e Morte: a poesia e o drama na narrativa fílmica d’O Sétimo Selo de Ingmar Bergman




O Sétimo Selo é uma obra singular no que respeita ao número de referências intertextuais nela contidas. São elas de natureza poética, trágica e cómica (e logo dramática) – manifestações evidentes de ordem maioritariamente existencial, empreendidas pelos mais diversos (e de certo modo tipificados, para que mais abrangentes) seres humanos.

Estáticas num ambiente que remonta a um cavado medievo histórico – estrutura precária profundamente enraizada nas mais sombrias práticas mágicas e religiosas – as personagens deste meio inerte, despido perante a crueza dos elementos da natureza, cedem à pulsão do medo, da peste e dum obscurantismo entregue ao auto-flagelo como paradoxal prática aliviadora.

Varrendo a costa desabrigada, a ventania propaga a morte pelas planícies e empurra os refugiados floresta negra adentro. As árvores e os seres, devastados à luz da intempérie nocturna, assistem à purificação das almas pelo fogo, à expulsão dos insondáveis inimigos de Deus, que penetram sem permissão as almas atormentadas dos pobres fiéis, permeáveis ao deboche do demo.

A morte é enfim o caminho único e inevitável. Hoje, amanhã ou depois de amanhã. Angústia permanente e no entanto tão desejada, tão merecida por todos quantos praticam a crueldade em pleno estado de ingenuidade incapacitante. Dança como um urso! Derradeira punição para os que se consomem pelo desejo carnal: Amor. A mais negra das pestes (...). Pode-se morrer de prazer.

A morte ocupa pois uma dimensão maior na generalidade da obra. É princípio inseguro, desenvolvimento imprevisível, desfecho aleatório mas de todo o modo postulado absoluto. Causa e consequência por si só, bastando-se nesse ciclo imutável, renovável e fechado, aparentemente sem nenhum outro sentido que não esse mesmo.

Porque a morte é uma certeza, uma questão de tempo e uma adversária desleal num jogo de xadrez. Porque a morte é cínica. Porque a morte é já o próximo crepúsculo. Porque é uma estratégia como outra qualquer, que não deve subaproveitar-se (Estás surpreendida por eu estar a roubar os mortos? É um negócio muito lucrativo, hoje em dia). Porque a morte é tremendamente bela, à maneira futurista (Uma caveira é mais interessante do que uma mulher nua).

Como superar a ansiedade da morte e torná-la produtiva e aceitável aos olhos de Deus? É preciso conhecer Deus. Ou mesmo Satanás, seu gémeo que atormenta e repugna os homens: Vejo a minha imagem [no espelho] e sinto nojo e medo. (...) Há que criar uma imagem do nosso medo e chamar-lhe Deus.

Neste filme de forte inspiração bíblica – onde o paganismo puro coexiste com notável naturalidade –, a presença do Destino surge marcada pelo mórbido. O capuz negro da morte, personificação contente no seu ridículo (porém implacável no agir), persegue omnipresentemente um cavaleiro (cavalgada = movimento = fuga) e diverte-se semeando a dúvida e a questionação, para responder apenas que as respostas não serão dadas, que as respostas não existem (existe uma resposta para a Morte, para Deus ou para o Amor?).

Atentemos no final do filme (ainda que esta criação exceda em larga medida este formato, estendendo-se a outros campos da expressão criativa), que encerra num cenário semelhante ao do seu início (forma circular). Como interpretar um grupo de pessoas literalmente de mãos dadas com a morte? Será que esta cedência perante a vida significa o desistir? Sim. Mas trata-se de uma desistência pouco clássica, marcada pela estóica capacidade de resistir cedendo. A derradeira fé é mesmo essa: entregar o corpo tacitamente, sabendo de antemão que o que sabemos é nada. Mas só nos é possível atingir essa consciência quando nos vemos diante do Mal, afinal a súmula encapuçada de todos os nossos mais primários medos, para os quais ainda não foi encontrada uma resposta que nos sossegue o bastante.

E é assim que devemos aceitar a morte. Caso contrário tudo acabaria por ser (...) um bocado prosaico. Desta maneira temos a certeza que a arbitrariedade da vida e, consequentemente, do amor, nos vence sempre sem que possamos resistir. Mesmo que enganemos a Morte por uma jogada que seja, ela acaba por nos arrebatar de qualquer modo, pois é maior e inelutável.

Para os que ficam, a assistir aos crepúsculos alheios, como um grupo de actores, é uma questão de prosaísmo. Como o amor: Podia ter-te violado. Mas não acredito nesse tipo de amor.

Daniel Boto

quinta-feira, dezembro 08, 2005

O cordeiro abriu o sétimo selo e fez-se um silêncio no céu


Entre o voo silencioso da águia do Apocalipse sobre o mar, ao romper do dia, e a dança macabra na crista da colina que varre o ecrã de lado a lado, no despertar da manhã seguinte, o cavaleiro Antonius Block trava o derradeiro jogo de xadrez com o Ceifeiro de manto negro. Três lances bastam para que o cavaleiro sofra cheque-mate.
Entre um dia e outro, o caminho percorrido construíra um mapa de peste, medo e intolerância. E à busca angustiada do cavaleiro pelo conhecimento, a Morte responde sempre que nada sabe. Até ao fim, quando é chegado o momento da coreografia que encerra o espectáculo da vida.

No início, porém, quando a águia sobrevoa a praia, já tudo se anunciara: quando o cordeiro abriu o sétimo selo, fez-se no céu um silêncio de cerca de meia hora.
É desse silêncio terrível, e só dele, que o filme de Bergman nos fala com tanta eloquência: o inelutável, definitivo e irreversível silêncio.
É verdade que o jogo de xadrez não poderia ter tido outro resultado. Apesar disso, Antonius Block consegue o supremo feito de enganar a Morte, poupando a esta a inocente e sagrada família de saltimbancos, Jof, Mia e Mikail.
Porém, porquê? E para quê?

Abílio Hernandez

O Sétimo Selo: storyline


A morte é iminente. Existe uma dificuldade de entender o fim (término e
finalidade) da existência. Não se conhece face-a-face o divino e vive-se
medroso e ignorante. Diante da morte há silêncio, protesto, expectativa,
medo e um dia, “perderemos o jogo de fuga à morte”.
Bergman faz um filme “difícil”, onde cada personagem é densa, na
complexidade e dimensão do tema abordado.

Paulo David Carvalho

Apocalipse 1

Apocalipse é o último dos 66 livros da Bíblia.
É de comum aceitação a autoria joanina (discípulo de Jesus e autor do 4º Evangelho) e a sua data é a mais tardia de todo os escritos do Novo Testamento: fim dos anos 80 e início dos anos 90 do primeiro século.
O nome é, por assim dizer, uma tradução fonética ou transcrição da palavra grega para o português. O significado desta palavra é “revelação” e na língua inglesa, o livro é designado por “Revelation”. O seu autor designa-o por “revelação de Jesus Cristo”, ou seja, é um desvendamento de Jesus Cristo. Cristo é o personagem principal e motivo do livro, podendo ser
também entendido como o próprio revelador do seu conteúdo.
Apocalipse está inserido no género literário chamado literatura apocalíptica e apresenta diversas semelhanças com esta (extra-bíblica), a qual se caracteriza pelas preocupações escatológicas (do adjectivo grego “eschatos”, que significa “final”), a revelação e interpretação de eventos por anjos, linguagem altamente simbólica, visões, dualismo radical, e acontecimentos cataclísmicos. Mas também se distancia desta por não ser pseudónimo, ser coerente (uso dos símbolos, descrição de personagens, lugares e eventos) e, particularmente, por ser positivo na sua perspectiva.
É um livro que apresenta a glória e vitória de Cristo sobre Satanás e o seu sistema; Cristo é ao mesmo tempo Juiz e Redentor (aquele que liberta mediante pagamento de resgate). Isso é estímulo aos que crêem n’Ele, como motivo de santidade prática presente (em vez do escapismo) e perseverança no presente à luz das promessas do futuro. É uma revelação para consolo e exortação (santidade e perseverança).

Paulo David Carvalho

Apocalipse 2

Numa visão mais historicista, poderemos fazer a seguinte divisão do livro:
Apocalipse 1-3: As Igrejas históricas.
Apocalipse 4-19: A descrição simbólica de eventos da história da Igreja.
Apocalipse 20-22: Estado Eterno.
O texto referido no filme de Ingmar Bergman refere-se ao “Sétimo Selo”
(Apocalipse, capítulo 8). Os Selos (capítulo 6), as Trombetas (capítulo 8 e 9) e as Taças (capítulo 16) são 3 séries de juízos. Mas o Sétimo Selo não tem uma descrição factual como os anteriores (sucede o mesmo com a Sétima Trombeta); o juízo deste Selo, são as Sete Trombetas e as seis primeiras Trombetas têm os seguintes juízos: tempestade de granizo que destrói 1/3 da vegetação; meteoro (?) que destrói 1/3 da vida marinha; meteoro (?) que envenena 1/3 da água potável do mundo; redução parcial da luz solar e estelar; hostes/exércitos demoníacos atormentam os homens por 5 meses; exército sobrenatural mata 1/3 da população da terra.
Para alguns autores, o Sétimo Selo conterá as duas últimas séries de juízos (Trombetas e Taças). Neste sentido, estende-se do capítulo 8 ao 18 e assume grande relevância. Os anteriores 6 selos têm os seguintes descrições: aparição do anticristo; guerra em escala mundial; fome em escala mundial; morte de ¼ da população da terra; orações imprecatórias dos santos mártires da Tribulação; terramoto gigantesco e distúrbios cósmicos.

O Sétimo Selo é, portanto, parte do juízo de Cristo e insere-se no contexto maior da descrição da vitória de Cristo sobre o sistema mundial oposto a Ele e o seu triunfo final sobre a impiedade. No livro de Apocalipse, a revelação de Cristo como Soberano e Juiz de todo o mundo exige submissão e adoração a Ele. Esta é a mensagem principal do livro, na qual se inserem os juízos, e, mais especificamente, o Sétimo Selo.

Quanto à proximidade que o livro mantém para as gerações que já o leram,
deve-se muito provavelmente ao próprio movimento da História, algo cíclico. A vivência dos leitores iniciais e seguintes é um espelho, pálido, talvez, das situações escatológicas narradas. O livro é composto por pontos de vista mais próximos ou identificáveis e outros mais distantes dos leitores. Tempos de guerra/perseguição e pestes/catástrofes são sempre mais próximos com estes tempos finais, narrados em Apocalipse.
Nos dias de hoje, creio que as sucessivas e constantes catástrofes de ciclones, assim como o possível controlo de um só governante mundial, nos aproximam mais desta narração do Apocalipse. Pessoalmente, creio que o mundo viveu apenas imagens do que virá.
Bergman realizou este filme, próximo da Segunda Grande Guerra, o que poderá tê-lo aproximado das profecias de Apocalipse mas, no entanto, ao contrário do livro de Apocalipse, existe algum pessimismo no filme que é inclusive reforçado pelo final em que Jof, Mia e Mikail dão um certo “ponto de luz”, com algum distanciamento de todo o filme!

Paulo David Carvalho

terça-feira, dezembro 06, 2005

Como uma aula suscita uma evocação e uma reivindicação


Depois dos confrontos interpretativos com o estilhaçado e sensual universo onírico de David Lynch, a melancólica e precária narrativa sobre o amor em Lou Ye e a espiral trágica da vertigem em Hitchcock, eis que chegámos ao território perturbador da questionação com Ingmar Bergman.
A obra que escolhi foi O Sétimo Selo. E aqui, confesso, surgiu para mim um primeiro e prévio elemento de perturbação com que não contava: o ter verificado que, no conjunto de cerca de quarenta alunos, de Estudos Artísticos e de Arquitectura, ninguém, nem um sequer, tinha visto este filme admirável. E que muitos nem sequer sabiam da sua existência. E que, da filmografia do cineasta sueco, apenas um aluno tinha visto A Fonte da Virgem e uma aluna Morangos Silvestres. E não estou a falar de alunos desinteressados, bem pelo contrário.

As causas desta falta de informação são muitas e relevam, em parte, da existência de um mercado cinematográfico e videográfico publicitariamente concentrado na produção mainstream dos últimos anos, a que se junta uma intervenção televisiva que é, como de costume, fatalmente determinante. Os grandes autores clássicos – como Bergman, Renoir, Murnau, Visconti ou Kurosawa, entre muitos outros – não são mais, neste circuito, que um pequeno nicho reservado a pacientes e persistentes coleccionadores ou cinéfilos de longa data.
Alguma coisa tem que ser feita. Pela minha parte, e já que não posso programar o circuito comercial ou as televisões, não descansarei enquanto a minha Faculdade não reservar, finalmente, uma sala dignamente equipada e destinada a exibir, todas as semanas, os inúmeros filmes invisíveis da história do cinema.

Assim, meus caros colegas do Conselho Directivo, este post acaba por ter-vos, imprevistamente, por principais destinatários. Por muito que reconheça – e faço-o com gosto – o apoio prestado por este Conselho Directivo à área de estudos fílmicos, não posso deixar de aqui lançar esta bloguística reivindicação: que o Teatro Paulo Quintela fique, rapidamente, ao serviço das artes que se ensinam na Faculdade. O meu querido mestre e amigo, nascido faz neste Natal cem anos e cuja memória o Teatro perpetua, ficaria com certeza satisfeito. E lá estaria connosco a ver O Sétimo Selo, aplaudindo os pobres e honrados saltimbancos e recitando o Apocalipse durante o jogo de xadrez do Cavaleiro com a Morte.

Abílio Hernandez

segunda-feira, dezembro 05, 2005

Em vertigem


Indica o título em português que a personagem feminina viveu duas vezes na vida do detective John Scotie: como Madeleine e como Judy.
Mas Vertigo é um filme de busca por enamoramento, onde ela vê perturbado o equilíbrio das emoções e se precipita para o engano de que é cúmplice, e o detective vive a rotação aparente do corpo das suas percepções e do da mulher que o seduz, por não saber o que se passa.

Paulo David Carvalho

domingo, novembro 27, 2005

VERTIGO - Obsessão e Psicose


Com o infeliz título português (como é tradição nossa) de “A Mulher que Viveu Duas Vezes”, Vertigo (ou “Vertigem” tão-somente) permanece uma referência insubstituível na intensa produção fílmica de Sir Alfred Hitchcock, em primeira instância no que se refere à sua construção centrípeta e, portanto, intrincada sobre si mesma.

Concebida em 1958 (entre Rear Window [1954] e Psycho [1960]), esta obra pode bem entender-se como monumento erigido à capacidade que o cinema tem, por excelência, de tecer a ilusão; a ilusão do equilíbrio (ou da falta dele) de Scottie (James Stewart), um polícia em convalescença perturbado pela morte de um colega; a ilusão de uma mulher (Kim Novak) que se faz passar por outra; a ilusão da morte; a ilusão do tempo – relativizado no interior de um tronco de sequóia; enfim a ilusão do próprio espectador, que tarda em apossar-se dos elementos mínimos que lhe permitirão construir uma versão coerente da narrativa.

Vertigem desde o primeiro instante, espiralando-se adentro a íris de um olho humano, de mulher. Vertigem na ligação entre mundos, dos vivos e dos mortos, das figuras de carne e osso e das pessoas pintadas numa tela. Vertigem de um vestido verde vivificando-se, ardendo por entre um salão saturado de vermelhos. Vertigem do déjà-vurepetição da morte e das suas circunstâncias.

No centro da espiral existe o vazio, multiplicado sobre si mesmo. Existe uma gravidade incontornável que puxa a matéria para o centro e a faz girar e cair. E apenas isso. Sem parar. É essa a raiz da vertigem – a incapacidade de discernir um ponto sólido, estático, que sugira o fundo do poço, o fim da queda.

Vertigem é o tormento de um homem, que um outro aproveita obscuramente para proveito próprio. É uma angústia que alastra ao espectador, que só pode lamentar o presente envenenado que é saber um pouco mais que o protagonista e ainda assim ser surpreendido pelo poder de sucção da espiral que, no fim, atrai para o abismo uma mulher que não pára de morrer (ou que pelo menos já “viveu duas vezes”), desta feita com o nome de Judy Barton…

No centro da vertigem jaz a morte, que pune quem a desafia. Mas e o que acontece àqueles que, como Scottie, se vêem de súbito na sua periferia, entre a estabilidade e a instabilidade? Será que alguma vez recuperarão na totalidade? Ou a vertigem não é apenas um estádio mas um medo adormecido, pronto a despertar a qualquer momento, como brecha súbita rasgando-se debaixo dos nossos pés? E será esse medo instrumentalizável por mãos alheias, em desfavor do desgraçado que ceder a esta fobia?

Daniel Boto